Artigos 3º a 6º do Código de Processo Civil
Conceito de ação e sua evolução
Já vimos que o Estado tem o poder – dever de prestar a tutela jurisdicional, isto é, de dirimir os conflitos de interesses. A jurisdição, no entanto, só age se provocada. É necessário discorrer, assim, sobre o meio de se provocar a tutela jurisdicional: a ação.
A par desse poder – dever do Estado de prestar a tutela jurisdicional, surge para o indivíduo um direito público subjetivo de acionar a jurisdição (direito de ação).
O direito de ação é público, porque se dirige contra o Estado-Juiz. É subjetivo porque o ordenamento jurídico faculta àquele lesado em seu direito pedir a manifestação do Estado (provocar a tutela jurisdicional) para solucionar o litígio, dizendo qual é o direito de cada uma das partes no caso concreto. Ação, portanto, numa concepção eclética:
é o direito a um pronunciamento estatal que solucione o litígio, fazendo desaparecer a incerteza ou a insegurança gerada pelo conflito de interesses, pouco importanto qual seja a solução a ser dada pelo juiz.
Destarte, mediante o direito de ação, provoca-se a jurisdição estatal, a qual, por sua vez, será exercida por meio daquele complexo de atos que é o processo.
O conceito de ação nem sempre foi o mesmo ao longo da história. Vejamos, pois, sua evolução:
1 – Teoria imanentista ou civilista → para os defensores dessa teoria, a ação é imanente (aderida) ao direito material controvertido, de forma que a jurisdição só pode ser acionada se houver o direito postulado. Em outras palavras, a ação seria o próprio direito material violado em estado de reação. Da adoção da teoria imanentista advêm três corolários (conseqüências, ilações):
a) não há ação sem direito material;
b) não há direito sem ação;
c) a ação segue a natureza do direito material alegado.
Nesse contexto, uma ação de cobrança, por exemplo, só poderia ser manejada se não pairar dúvida sobre o crédito do autor. É a teoria defendida por Savigny e adotada pelo Código Civil de 1916, que dispunha em seu art. 75, que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”.
Com o passar do tempo, essa teoria foi abandonada pela doutrina, que, de um modo geral, passou a considerar o direito de ação autônomo, distinto, portanto, do direito material. Segundo essa linha de raciocílio, o disposto no art. 75 do CC de 1916 não foi reproduzido no CC de 2002, de modo a consagrar a desvinculação entre a ação e o direito material postulado. Essa desvinculação, contudo, não é absoluta, como veremos a seguir.
2 – Polêmica Windscheid X Muther – a ação como direito autônomo → foi o conhecido debate entre os juristas alemães Windschei e Muther, no ano de 1856, que possibilitou a reelaboração do conceito de ação. Ação, antes concebida como um direito de exigir o que é devido (teoria imanentista), passou a ser vista como autônoma em relação ao direito material controvertido (o direito ao crédito, por exemplo). É que, no final da polêmica, ficou assentado que o direito disputado pelas partes e o direito de ação são realidades distintas, como bem explica Alexandre Freitas Câmara:
“[...] pense-se num direito material, como o direito de crédito, e compare-se tal direito com a ação. Enquanto no primeiro o sujeito passivo é o devedor, no segundo o sujeito passivo é o Estado (já que o direito de ação seria o direito à tutela jurisdicional). Ademais, no direito de crédito (que é direito material de nosso exemplo), a prestação devida é uma obrigação de dar, fazer ou não fazer, enquanto no direito de ação o que se quer do Estado é a prestação da tutela jurisdicional”.
Assim, independentemente do direito que se diz lesado, da ação nascem dois direitos: a) o direito do ofendido de pedir a tutela jurídica do Estado (direito público subjetivo); b) o direito do Estado (que detém o monopólio da justiça) de compor o litígio.
A partir do debate entre Windschei e Muther, duas correntes principais se formaram para explicar a natureza autônoma da ação:
I – Teoria da ação como direito autônomo e concreto
Para essa teoria a ação é autônoma, mas só existe quando a sentença for favorável (ação consiste no direito à sentença favorável). Em outras palavras, o direito à ação só é possível quando existir o direito material.
Principais defensores da teoria: Wach, Bulow, Hellwig.
A partir dessa teoria, CHIOVENDA formulou a teoria do direito potestativo, segundo a qual a ação é autônoma e concreta, se dirigindo contra o adversário, sujeitando-o.
Na atualidade, poucos defendem a teoria do direito concreto de ação. Mesmo assim, ainda é freqüente a menção, em doutrina, jurisprudência ou mesmo no próprio CPC (art. 76) à “procedência da ação”, o que, partindo-se da concepção autônoma e abstrata do direito de ação, evidencia erro de técnica. Afinal de contas, se o direito de ação não possui qualquer relação com o direito material objeto da lide, como julgá-la procedente ou improcedente? O mais correto, pois, é se falar em procedência ou não do pedido formulado na petição inicial.
II – Teoria da ação como direito autônomo e abstrato → para essa teoria, a ação não tem qualquer relação de dependência com o direito material controvertido. Seu surgimento está atrelado a duas perguntas que não foram respondidas nem pela teoria imanentista nem pela teoria concreta, a saber:
a) Em que consiste a atividade jurisdicional prestada pelo Estado – Juízo no caso de improcedência do pedido formulado na inicial de determinada demanda?
b) Se o direito de ação só é possível quando existir o direito material, como explicar a sentença de procedência proferida em ação declaratória negativa, cujo objeto consiste justamente na declaração de inexistência de relação jurídica entre o autor e réu?
Para responder a tais questões, formulou-se a concepção abstrata do direito de ação. Segundo essa concepção, além de autônomo, o direito de agir é independente do reconhecimento do direito material. Ação, então, passou a ser entendida como o direito público subjetivo a um pronunciamento judicial, seja favorável ou desfavorável. Basta que o autor invoque um hipotético direito que mereça proteção para que o Estado fique obrigado a pronunciar-se. Principais defensores: o alemão DEGENKOLB e o húngaro PLÓSZ.
3 – Teoria Eclética → como ressaltado no início deste tópico, este é o conceito de ação adotado pelo CPC. Segundo LIBMAN, procurador da teoria eclética, o direito de ação não está vinculado a uma sentença favorável (teoria concreta), mas também não é completamente independente do direito material (teoria abstrata). Há, de fato, uma abstração do direito de ação, no sentido de que a existência do processo não está condicionada à do direito material invocado; porém, sustenta-se pela teoria eclética que a ação é o direito a uma sentença de mérito, seja qual for o seu conteúdo, isto é, de procedência ou improcedência.
Para surgir tal direito, devem estar presentes certos requisitos, denominados de condições da ação; aliás, a ausência de tais condições gera o fenômeno designado por “carência de ação”. É importante observar que não apenas as condições da ação, mas também os pressupostos processuais são requisitos necessários para que se tenha direito à sentença de mérito. É tanto que o direito moderno (Itália, Alemanha), tais instituto são tratados conjuntamente e não de maneira dissociada, como se vê na doutrina nacional.
O acolhimento da teoria eclética de LIBMAN pelo CPC é evidenciado por uma série de dispositivos, tais como o art. 267, VI, que estabelece a extinção do processo sem resolução do mérito “quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse processual”.
A teoria eclética, no entanto, também não esteve imune de críticas, mormente em razão da relação que estabelece entre o direito de ação e o resultado final do processo. Nos dizeres de ROSEMIRO LEGAL, a corrente capitaneada por LIBMAN vinculou a ação “a uma pretensão de direito material, retornando ao imanentismo da corrente de SAVIGNY, deixando mesmo de reconhecer no direito-de-ação qualquer implicação constitucional de direito incondicionado de movimentar a jurisdição”.
Vale observar, ademais, que a concepção eclética original tem sido mitigada pela doutrina moderna, que não vislumbra as condições da ação como requisitos à existência da ação, mas sim como requisitos ao legítimo exercício de tal direito ou, ainda, condições para o provimento final. “As condições da ação seriam, então, os requisitos do legítimo exercício da ação, e a ‘carência da ação’ deverá ser vista não mais como ‘inexistência’, mas como ‘abuso’ do direito de ação.
É certo que o exercício do direito de ação (ou seja, o direito de provocar a jurisdição) é incondicionado e autônomo, quer dizer, independe da existência do direito material que se alega possuir. A Constituição Federal, aliás, considera garantia fundamental o direito de ver apreciado em juízo a lesão ou ameaça de lesão (art. 5º, XXXV).
Entretanto, conquanto autônomo, não há como deixar de considerar que o direito material exerce importante influência no exercício do direito público de ação. O direito material chega, inclusive, a determinar o procedimento a ser adotado. Se rito sumário ou ordinário, se ação de usucapião, possessória, monitória, consignatória em pagamento, depósito, tudo depende do direito material discutido.
Enfim, o conceito:
Feito esse breve retrospecto histórico, e à guisa de conclusão, podemos afirmar que a ação é o meio de se provocar a tutela jurisdicional do Estado, que será exercido mediante o processo, independentemente da existência ou não do direito material invocado – o que só será resolvido ao final, com o julgamento do mérito.
*Elpídio Donizetti, Curso Didático de Direito Processual Civil, Atlas, 2011